Clarice Lispector





Um Cavalo Preto e Lustroso
de Clarice Lispector
(escritora ucraniana-brasileira)


Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que, apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém, nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem, tem por isso mesmo, uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. 

Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. 

Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa, e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é, ao mesmo tempo salvagem e suave. 

Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. 

Se ele fareja e sente um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos. 

Aviso também que não se deve temer seu relinchar: A gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.


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