Eu sei, mas não devia









Eu sei, mas não devia 
(Marina Colasanti, escritora ítalo-brasileira)


Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora
A tomar café correndo porque está atrasado
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar
A sair do trabalho porque já é noite
A cochilar no ônibus porque está cansado
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar

E a ganhar menos do que precisa
E a fazer filas para pagar
E a pagar mais do que as coisas valem
E a saber que cada vez pagará mais
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes
A abrir as revistas e a ver anúncios
A ligar a televisão e a ver comerciais
A ir ao cinema e engolir publicidade
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos
A gente se acostuma à poluição

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro
A luz artificial de ligeiro tremor
Ao choque que os olhos levam na luz natural
Às bactérias da água potável
A contaminação da água do mar
A lenta morte dos rios

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma

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